Por: Marcela Oliveira[1]
Supervisão: Felipe Ansaloni[2]
I – Introdução
A realização de licitações públicas é um procedimento essencial para que a Administração Pública possa adquirir bens, contratar serviços e executar obras, sempre buscando a proposta mais vantajosa para o erário e em observância ao interesse coletivo.
A Lei nº 14.133/2021, a Nova Lei de Licitações, estabelece as regras para esses processos.
No entanto, em algumas situações, a Administração Pública pode se deparar com a necessidade de revogar um certame já instaurado. Mas, afinal, quando essa medida é realmente legítima?
O recente Acórdão 2251/2025 da Primeira Câmara do Tribunal de Contas da União (TCU), relatado pelo Ministro Jhonatan de Jesus, oferece um importante direcionamento sobre essa questão, enfatizando a imprescindibilidade de fatos supervenientes e motivação adequada para a anulação de uma licitação.
Este artigo explora essa importante decisão à luz da Nova Lei de Licitações, com o objetivo de orientar gestores públicos e empresários sobre os limites e as condições para a revogação de um certame licitatório.
II – Revogação de Licitação: Quando a Administração Pública Pode Realmente Cancelar um Certame?
A revogação de licitações é um tema sensível na administração pública, pois envolve o equilíbrio entre a necessidade de eficiência e o respeito aos princípios constitucionais, como o da motivação e o da impessoalidade.
Tradicionalmente, a Administração Pública dispunha de relativa discricionariedade para revogar licitações por razões de conveniência e oportunidade. No entanto, esse entendimento foi substancialmente alterado pela Nova Lei de Licitações, que exige justificativa técnica e motivação explícita para qualquer revogação.
A Lei nº 14.133/2021, em seu artigo 71[3], estabelece que “a revogação do procedimento licitatório poderá ocorrer quando houver razão de interesse público, em virtude de fato superveniente ao início do processo licitatório, que constitua obstáculo incontornável à continuidade do processo, devidamente fundamentado”. Este dispositivo mantém a essência do que previa o artigo 49 da Lei nº 8.666/1993, mas com maior ênfase no caráter excepcional da revogação e na necessidade de fundamentação robusta.
No Acórdão 2251/2025, o TCU determinou a anulação do ato de revogação de uma licitação após constatar que a justificativa apresentada era genérica e incapaz de demonstrar a real necessidade do cancelamento. Para o Tribunal, a ausência de motivação adequada fere os princípios da legalidade, motivação, eficiência e segurança jurídica, comprometendo a legitimidade do processo licitatório:
“Licitação. Ato administrativo. Revogação. Fato superveniente. Princípio da motivação.
A revogação de certame licitatório só pode ocorrer diante de fatos supervenientes que demonstrem que a contratação pretendida tenha se tornado inconveniente e inoportuna ao interesse público. Ao constatar que a motivação da revogação foi genérica e incapaz de demonstrar sua real necessidade, pode o TCU determinar ao jurisdicionado que anule o ato revogatório, a fim de permitir a continuidade da licitação.” (grifo nosso)
(ACÓRDÃO 2251/2025 – PRIMEIRA CÂMARA – Relator: JHONATAN DE JESUS – Processo: 001.608/2025-8 launch – Tipo de processo: REPRESENTAÇÃO (REPR) – Data da sessão: 01/04/2025 – Número da ata: 9/2025 – Primeira Câmara)
Embora a Nova Lei de Licitações traga o requisito da comprovação do fato superveniente, a jurisprudência do TCU, como demonstrado no acórdão em questão, detalha a necessidade de que essa comprovação seja robusta e específica, demonstrando o real prejuízo ao interesse público caso a licitação prossiga.
A decisão do TCU reforça a necessidade de que os gestores públicos ajam com cautela e responsabilidade ao considerar a revogação de um certame. A revogação arbitrária ou motivada de forma superficial pode gerar prejuízos não apenas aos licitantes, que investiram tempo e recursos na elaboração de suas propostas, mas também à própria Administração, que pode ter que reiniciar o processo licitatório, acarretando atrasos e custos adicionais.
Para os empresários, a clareza e a fundamentação das decisões administrativas são essenciais para a segurança jurídica e para a participação em licitações de forma confiante. Uma revogação imotivada ou baseada em justificativas vagas pode gerar desconfiança no sistema de contratações públicas e desestimular a competição.
III – Recomendações do TCU aos Órgãos Públicos:
Com base na jurisprudência do TCU e nas disposições da Nova Lei de Licitações, recomenda-se aos gestores públicos:
- Motivação Robusta e Específica: Qualquer decisão de revogação de licitação deve ser precedida de uma análise detalhada e aprofundada dos fatos supervenientes que a justificam. A motivação deve ser clara, específica e demonstrar de forma inequívoca como a continuidade da licitação se tornou contrária ao interesse público. Evite motivações genéricas e abstratas.
- Documentação Completa: Mantenha toda a documentação comprobatória dos fatos supervenientes que levaram à decisão de revogação. Relatórios técnicos, pareceres jurídicos e outros documentos relevantes devem integrar o processo administrativo, demonstrando a real necessidade da medida.
- Transparência: Comunique de forma clara e transparente aos licitantes os motivos da revogação, fornecendo todos os elementos que fundamentaram a decisão. A transparência contribui para a credibilidade do processo e minimiza a possibilidade de questionamentos futuros.
- Análise de Alternativas: Antes de optar pela revogação, avalie se existem alternativas menos gravosas para solucionar a questão superveniente, como a alteração do edital ou a suspensão temporária do certame. A revogação deve ser a ultima ratio.
- Observância dos Princípios: Reafirme o compromisso com os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da eficiência e do interesse público em todas as etapas do processo licitatório, incluindo a eventual decisão de revogação.
IV – Recomendações da 11E Licitações aos Empresários:
Empresas que participam de licitações públicas também devem estar atentas à legalidade dos atos de revogação:
- Exija a publicação da motivação do ato revogatório, conforme assegurado pela Nova Lei de Licitações.
- Questionem, administrativa ou judicialmente, revogações baseadas em justificativas frágeis ou genéricas, sobretudo quando houver indícios de vício no processo decisório.
- Documentem investimentos feitos para participar da licitação (como custos com documentação técnica ou deslocamento), pois pode haver espaço para pleitear reparações em caso de anulação indevida do certame.
- Mantenham acompanhamento estratégico das decisões do TCU e demais órgãos de controle, antecipando riscos e oportunidades no mercado público.
V – Comentários do Professor Felipe Ansaloni
A interpretação do TCU no Acórdão 2251/2025 estabelece um importante marco para a aplicação do artigo 71 da Lei nº 14.133/2021, consolidando o entendimento de que a discricionariedade administrativa não é ilimitadaquando se trata da revogação de licitações. O rigor na exigência de comprovação de fatos supervenientes representa uma evolução significativa na jurisprudência brasileira sobre o tema.
Na prática cotidiana das contratações públicas, percebo que muitos gestores ainda consideram a revogação como uma “válvula de escape” para situações de insatisfação com o resultado do certame ou para corrigir falhas no planejamento inicial – práticas que claramente contrariam a legislação vigente e a jurisprudência consolidada.
Recomendo aos gestores públicos que desenvolvam protocolos internos de verificação antes de qualquer decisão de revogação, documentando detalhadamente a análise técnica do fato superveniente e seu impacto concreto sobre o interesse público. A motivação deve ser específica, demonstrando o nexo causal entre o fato novo e a impossibilidade de prosseguimento do certame, evitando justificativas genéricas que não resistem ao escrutínio dos órgãos de controle.
Para os empresários licitantes, sugiro a adoção de uma postura proativa na fiscalização dos atos revogatórios. O contraditório administrativo, antes mesmo da judicialização, pode ser extremamente eficaz quando bem fundamentado tecnicamente, especialmente se demonstrar o descumprimento dos requisitos legais para revogação. A documentação sistemática de todos os custos incorridos para participação no certame também é fundamental para eventual pleito indenizatório.
A segurança jurídica nas contratações públicas é um valor que beneficia tanto a Administração quanto o mercado. O fortalecimento dos mecanismos que garantem decisões administrativas técnicas, transparentes e motivadas contribui para um ambiente de negócios mais previsível e para a eficiência da máquina pública. Este acórdão do TCU representa um passo importante nessa direção, ao estabelecer parâmetros objetivos para avaliação da legitimidade dos atos revogatórios.
VI – Conclusão
O Acórdão 2251/2025 do TCU reforça um entendimento já consolidado na jurisprudência: a revogação de licitações não pode ser um ato discricionário ilimitado da Administração Pública. A Nova Lei de Licitações, ao exigir a comprovação de fato superveniente, alinha-se a essa visão, buscando garantir maior segurança jurídica e transparência nos processos de contratação.
Para os gestores públicos, a mensagem é clara: a revogação exige responsabilidade, fundamentação robusta e a demonstração inequívoca de que a continuidade da licitação atenta contra o interesse público. Para os empresários, a atenção à motivação dos atos administrativos e o exercício de seus direitos são ferramentas essenciais para garantir a lisura e a justiça nos processos licitatórios. A observância desses preceitos contribui para um ambiente de contratações públicas mais eficiente, transparente e confiável para todos os envolvidos.
VII – Como citar este texto
BARBOSA, Felipe José Ansaloni. OLIVEIRA, Marcela de Sousa. Revogação de Licitação: Quando a Administração Pública Pode Realmente Cancelar um Certame? 2025. Disponível em: www.11E.com.br.
VIII – Palavras-chave
Revogação de Licitação – Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021) – Tribunal de Contas da União (TCU) – Acórdão 2251/2025 – Fato Superveniente – Interesse Público – Motivação (Atos Administrativos) – Gestão Pública – Empresários – Licitantes – Contratação Pública – Princípios da Licitação – Segurança Jurídica – Controle Externo – Direito Administrativo
IX – Observação:
Este artigo tem caráter meramente informativo e geral. O seu conteúdo não substitui a consulta a profissionais especializados em Consultoria e Assessoria em Licitações e Contratos Administrativos, especialmente para a avaliação de casos concretos. Recomenda-se que os Órgãos Públicos busquem orientação jurídica especializada e casuística, antes de realizar qualquer contratação. A 11E Licitações, empresa especializada no segmento de consultoria e treinamentos, pode auxiliar o seu órgão público. Entre em contato conosco pelo: contato@11e.com.br ou whatsapp: (31) 3568-8311.
[1] Analista da 11E Licitações.
[2] CEO e Professor da 11E Licitações.
[3] Art. 71. Encerradas as fases de julgamento e habilitação, e exauridos os recursos administrativos, o processo licitatório será encaminhado à autoridade superior, que poderá:
II – revogar a licitação por motivo de conveniência e oportunidade;